Aparentemente, Deus criou o homem com a capacidade inata de reconhecer o Divino. Talvez, a herança que trazemos de antes da queda de Adão seja a possibilidade de reconhecer a Divindade como tal, em todos os seus atributos – onipotente, onisciente, onipresente, maravilhoso. No homem, o “slot” para encaixar o Divino, “vem de fábrica”. Esse atributo é a capacidade do homem de produzir o sagrado.
O sagrado é inerente ao fenômeno religioso, uma vez que a experiência religiosa consiste na relação da pessoa com o sagrado. Na experiência religiosa, experimenta-se a presença de um poder estranho, totalmente diferente - totalmente outro. A atitude natural da pessoa, diante de tal presença, é de espanto e fé.
A experiência religiosa não consiste apenas de afirmações racionais e de princípios morais; há no sagrado um aspecto inefável, percebido pelo sentimento como realidade sagrada, como mistério terrível e fascinante: “eu tenho medo dele e ao mesmo tempo ardor por ele” (Santo Agostinho).
A psicologia da religião afirma que estes sentimentos não são produzidos pela consciência, mas são o efeito subjetivo da presença, no eu, de uma realidade diferente do próprio eu: o numinoso. Na compreensão de Jung, o numinoso é uma instância ou efeito que arrebata e controla o sujeito humano, o qual é antes vítima que criador. O numinoso é uma experiência do sujeito que se sobrepõe à vontade.
Jung afirma que a experiência com o numinoso não é ação da vontade humana, antes é uma atitude de abertura ao sentimento de força tremenda que, em si, encerra um significado ainda não revelado, atrativo e profético ou fatídico. Segundo as suas pesquisas acerca da religião, Jung afirma que conteúdos previamente inconscientes rompem as barreiras do ego e dominam a personalidade consciente da mesma maneira como em situações patológicas. O numinoso, então, se apresenta como um elemento da inconsciência coletiva. Algo que o ser humano carrega dentro de si. Para ele, a experiência religiosa não sustenta uma prova da existência de Deus; porém, em todos os casos, são experiências arrebatadoras que excedem a descrição em palavras.
O conceito de numinoso em Jung provêm do teólogo Rudolf Otto, que o caracteriza por ser Tremendum (que causa tremor), Majestas (avassalador), Mysterium (o totalmente oculto). O Numinoso é “fascinante” e “assombroso” a um só tempo. A essência do numinoso está na sua potência e alteridade. O Numinoso é ao mesmo tempo totalmente diferente do homem, e totalmente poderoso.
As experiências sagradas colocam o crente em contato com o numinoso. Todas as experiências com Deus são experiências com o Sagrado. Contudo, nem sempre a experiência com o sagrado – a experiência religiosa – é uma experiência com Deus.
A secura dos corações no nosso tempo tem levado as pessoas a buscar um encontro com o Numinoso. No desejo de se voltarem para Deus, muitas vezes se perdem por caminhos sagrados que não levam ao Divino. Muitos são os que desejam antes “sentir” a presença de Deus do que “conhecê-lo”. Por isso tantas igrejas lotadas e tão pouca mudança de vida.
Como pode um país ter tal contingente de cristãos e não apresentar significativas mudanças nos seus indicadores sociais, de violência, de exclusão? Muitos são os templos, para as quais afluem multidões a propósito de um encontro com o Divino, produzindo, em vez disso, experiências com o sagrado que não atravessam as paredes do templo. São noites em que as pessoas se voltam para dentro de si, olhando para o arquétipo que carregam em seu inconsciente. Olham para o leito seco do rio, imaginando contemplar um turbilhão de águas.
As experiências com o sagrado – exclusivamente – não provocam desdobramentos para a vida. Estão restritas e localizadas a um lugar e momento. A maravilha, o temor e o fascínio provocado pelo sagrado bem podem ser experimentados em um grande concerto de rock – ou sob o efeito de anfetaminas – mas isso não transborda em vida, e vida em abundância.
Ainda que a presença de Deus nos arrebate para uma experiência além do compreensível, o Divino não se manifesta somente em temor e tremor. Já estão gastos os cacoetes evangélicos, os quais reúnem um leque de gemidos, tremores, pulos e levantar de mãos, mas que não se materializam no amor ao próximo, no comportamento ético e no compromisso com Deus. O Divino se manifesta no amor em ação – como o amor do Bom Samaritano – mesmo que não se apresente como experiência religiosa.
O rito sagrado pode nos levar ao numinoso, mas a revelação do Divino é ação da parte de Deus. Ele se releva quando quer. Para tanto, o rito não é o que importa, mas a disposição existencial de se jogar no desconhecido, abrir os braços para a revelação de Deus. Somente Cristo transforma nosso ser – a moral, o comportamento, o amor ao próximo. A experiência com o Divino provoca em nós uma mudança de consciência, compromisso com a vida; uma ação transformadora do mundo da vida.
A vida ascética para a qual o sagrado nos dirige, em que a negação da vida na terra nos aproxime do numinoso, são relações verticais entre o ser e o “transcendente” universal – apenas nos leva para dentro de nós mesmos. Este ascetismo nos afasta das pessoas. O Divino, contudo, nos leva ao outro: “Amai-vos uns aos outros como eu os amei”,“Ide a anunciai”.
Na distinção entre o Sagrado e o Divino, entre os mitos, arquétipos e divindades numinosas e o Cristo, a abundância de vida é o que se apresenta. A vida de Jesus é o que o separa de um mito qualquer.